sábado, 9 de janeiro de 2010

O Cobrador


                                       -Como é o teu nome?


-Tava trabalhando pros lado de Bagé, quando chegou a notícia que meu velho queria me ver antes de morrer ...Por mim, que se terminasse como tinha vivido, na perdição, sem ninguém do lado. Fazia anos que não via ele, desde de gurizote quando saíra do nosso rancho, despois da morte de minha mãe, que se finara de desgosto.
Era um porquera, sempre fora, e duvidava muito que tivesse mudado...Pois, mesmo ansim, sabendo quem ele era, não sei o que me deu, botei o chapéu na cabeça, encilhei o matungo e meti as patas na estrada. Dois dias de viagem.
Fui contrariado, pensando no quanto sofrimento aquele tipo que se dizia meu pai tinha causado a nós. Talvez, até fosse bom encontrá-lo depois de tanto tempo, ia dizer umas verdades pra ele levar pros moradores do outro lado.Eram os pensamentos que povoavam a minha cabeça, mas nem sempre as coisas acontecem como a gente espera.
Cheguei, no rancho, no que restara do rancho, eram umas ocho de la noche. Noite fria e escura, ventosa. Tudo no rancho, o que restara dele, tava no empenho, isso eu sabia, ninguém precisava dizer .
Ele vivera empenhando a terra, dessa vez não ia ser diferente. Depois da morte dele, com certeza, levariam das telhas ao cisco do terreiro .
Alguma pessoa caridosa deixara um candeeiro aceso no quarto. Foi o que vi, assim que apeei do cavalo.
Pois, como esperava, ele tava solito. E se finando. Um fiapo do que fora. Me reconheceu de vereda, apesar da luz rala. Espremendo o resto de vida que tinha no corpo tentou mostrar contentamento com a minha chegada e gaguejou no meio de uma tosse rouca:
-Meu filho, meu filho, inda bem,inda bem que tu veio...
Não sei ...
-Não tenho direito de te pedir nada, meu filho... - Mas pela tua mãe...
Ele quase não conseguia falar, engasgava nas palavras e tossia, dum jeito bem ruinoso, dava pena. Dava pena ver aquilo que fora meu pai, orgulhoso, gritão, agora, no leito de morte, na minha frente, virado num trapo, chiando no peito, se espremendo pra conseguir falar.
-Vou te pedir um último favor ....
“Pede de vereda, antes que eu vire as costas e te deixe morrer como tu mereces” -pensei, mas não disse.
Juntando as forças, ele falou tossindo:
-Não tenho direito de pedir... mas me ajuda, pela tua mãe..
Se ele não tivesse invocado o nome da minha mãe, não sei...
-Vou morrer antes da meia noite e tem alguém aí que vem cobrar uma dívida. -que não posso pagar... se eu morrer antes, ele não pode me cobrar. Me ajuda, meu filho, em nome de tua mãe! ...não deixa ele entrar aqui...
E tome tosse...
Vocês me conhecem !
Não sou homem de negaciar ajuda e inda mais numa situação daquelas, apesar de tudo, era meu pai, e me pedia pouca coisa...Não queria falar com um cobrador....E quem é que gosta de cobrador ?
Não tava em mim dizer que não. Falei que atendia o pedido, que não deixaria ninguém entrar no quarto dele, muito menos um cobrador... ele se esforçou pra juntar a rugas da cara pra conseguir dar um riso agoniento e triste de agradecimento.
Na verdade, a morte dele não me fazia a mínima diferença. Não sentia nada mais por ele. Era um estranho pra mim. Mas dá pena ver um sujeito morrer assim, solito no mas. Talvez não merecesse cosa melhor.
Fui para cozinha, botei água no fogo, comecei a cevar um mate, não tava com fome, tinha comido um carreteiro num bolicho do caminho.
Devia ser umas onze e qualquer coisa, da noite, e um cusco magro e fraco, que havia sobrado no rancho, latiu e ouvi um trote de cavalo.
Veio se aprochegando, se aprochegando e chegou.
Deveria ser o tal cobrador.
Como havia feito a promessa pro velho, o cobrador tinha que falar comigo e não ia falar com ele.
Pra que ele visse bem a minha cara e eu a dele, tinha deixado a porta dos fundos aberta, iluminara a cozinha com três lampiões, um em cima da mesa, outro no armário e um perto do fogão.
Aquilo orientava qualquer um que olhasse de fora da casa. O tal cobrador teria que entrar por ali. E me encontrar.
Íamos trocar uns dedos de prosa.
Me sentei no velho banco da mesa da cozinha, colocando em cima minha faca e o meu trabuco. Esses que vocês estão vendo. Fiquei esperando com mate na mão e a chaleira no chão. Crescera naquele chão duro, de tabatinga.
Tava com o corpo meio enviezado, de olho em direção à porta, tomando meu mate, devagarito no mas.
Ouvi o barulho das esporas no terreiro, pelo barulho era um homem só. Melhor assim.
E ele foi se chegando, chegando... quando se enquadrou na porta, ela ficou pequena. Era um animal desta altura! Dava pra fazer três pessoas com aquele couro.
-Buenas! -saudou com uma voz cavernosa, tirando o chapéu e esperando que lhe convidasse pra entrar.
Pelo menos parecia ser um tipo educado. Um índio maneiroso, mas era pra lá de grande e forte, e vocês sabem que não sou de achar homem forte. Mas esse era parrudo dos quatro costados, tinha basta cabeleira, tão preta que se confundia com o escuro da noite lá fora, onde a lua, de vez enquando, dava o ar de sua graça.
Vestia roupa escura, umas bombachas bem cortadas e uns afivelos de prata enfeitavam o cinto e as esporas. O índio tinha cara maleva, um bigode que parecia molhado na graxa, de tão lustroso. Inda por cima o tipo tinha um ar de quem não era de ser por dúvida.
-É a casa do velho Fonseca?
-É o lugar certo! - retruquei - se aprochegue, venha tomar um mate! -convidei o grandalhão, tentando avaliar aquela figura soturna. Pois, o vivente levantou a perna pra passar na trava da porta, entrou e sentou do outro lado da mesa, na minha frente. O banco véio chegou a dar um gemido reclamando do peso da cavalgadura em cima da madeira quase podre. No lusco- fusco do lampião, reparei que um baita talho descia da sobrancelha pelo olho e passava por baixo do bigode, pegando na ponta do osso do queixo.
-Que mal lhe pergunte, antes de aceitar um mate de um estranho, com quem tô falando?perguntou.
-Sou o filho do velho Fonseca. Iron Fonseca, sim senhor, e o amigo, quem é?
-Um credor de seu pai! Mas este meu trabalho! Não sabia que o velho Fonseca tinha filho. Pra mim é uma boa nova.
-Não entendo porquê! Pois, meu velho pai, que está lá dentro pra morrer, disse que estava esperando um cobrador. Não sei porque o senhor não espera como os outros pra receber amanhã as sobras do rancho. Que eu saiba, ele sempre pagou as dívidas, pois era a única maneira de continuar fazendo mais dívidas.
Naquele lero-lero, tentiava tirar uma linha daquele tipo maneiroso. Havia prometido pro velho: ninguém botava os cascos no quarto dele. Muito menos um cobrador. Ele não iria cobrar dívida nenhuma. Nem que tivesse de me agarrar na faca. Mas essa ele já tinha visto junto com o trabuco, em cima da mesa. Essa mesma faca e esse trabuco, que vocês estão vendo, estavam lá. Paraditos, no más, os dois, em cima da mesa.
Mas, do jeito que o animalão pegou o mate, não parecia apressado em falar com o velho. Sosseguei um pouco. Também não parecia assombrado com as armas à vista e nem preocupado em, talvez, ter que partir pro esquisito comigo.
-Mas, afinal, quanto o velho Fonseca lhe deve ?
-Muito!-respondeu num sotaque portenho.
-Pelos atavios, vejo que sua profissão é bem rendosa...-comentei, tentiando diminuir aquele silêncio que só não era maior por causa do tal cusco agourento que, de vez em quando, se esganiçava num uivo triste, ou ainda pelo barulho do vento nas frichas da casa.
-Não tenho do que me queixar, pois, por exemplo, se cobro uma dívida como essa que venho aqui cobrar, e o devedor não pode pagar, alguém paga por ele. Normalmente, alguém muito chegado. Recebo sempre - disse ele com aquele olho fechado de cupincho.
Foi aí que entendi o porquê da alegria dele quando me encontrara ali, e da última maldade do meu velho. Me largar uma dívida dele no meu pobre lombo. Na hora me apareceu um nojo daquilo tudo, velho safado!
-Ou o amigo não sabia que filhos herdam também as dívidas? -falou, o cobrador roncando o mate e me estendendo a cuia, que peguei como se fosse uma pedra cheia de rebarbas.
E se fosse uma pedra ia atirar na cara daquele descarado, aliás, já não sabia qual dos dois era mais calavera, se era ele ou meu velho que se estrebuchava lá dentro...Tem coisas que tu faz na hora, se deixar pra depois, o depois pode não existir e foi o que fiz.
Fervendo de raiva, larguei a cuia devagarito ...E me atirei feito bicho por cima da mesa com a faca! Essa mesmo aqui que vocês estão vendo. Pulei pra acertar o pescoço daquele desgraçado! Ia sangrar ele ali mesmo, se não lhe sampasse uns dois coices naquele traseiro bem embombachado, mandando-o porta à fora.
Mas, até o dia de hoje, não sei o que houve...errei o bote, sei lá ! Ele agarrou meu pulso antes de chegar no pescoço e torceu, e torceu dum jeito que me vi no chão, a faca caída pro outro lado e o beiço enterrado na tábua da mesa e ele, sentado no mesmo lugar, só que segurando o meu pulso com uma munheca de ferro.
-Não te ensinaram que não se deve atacar alguém desarmado? -falou ele naquela voz maneirosa que não deixava dúvida. Parecia até que ria, no lado torto da boca.
Não acreditei! Um cobrador, um sujeito com aquela cara deslavada não carregava nem uma pistola, mas deitado, torto, com a cara cravada no tampo da mesa, com o pulso quase destrocado, não eu não tava em condições de nem de piar.
-O amigo me desculpe, mas não quero ofender! Vim em paz, cobrar o que me devem. Vamos tomar mais um mate, quem sabe acertamos uma maneira de receber o que o teu pai me deve!
Não dava pra discutir, me levantei meio mole, um pouco troncho. Não sei o que me deu, atacar aquele cavalão assim no más, achei na hora que tinha enlouquecido, é que o sangue me subiu nas ventas, o velho passara a dívida dele pra mim! Mas fosse como fosse, não ia pagar nada pra quele tipo maneiroso, errei na faca, mas ainda tinha chance com meu trabuco.
-Nem pense nisto, vivente! -falou ele, sentindo meu olhar maldoso para a arma -vamos tomar um mate, podemos resolver esse problema em paz. Vou te dizer o que o teu pai me deve e gostaria de ouvir a sua opinião como herdeiro.
Eu caíra como um pato bobo na arapuca armada pelo velho! De que maneira ia me livrar daquele índio com aquela cara cheia de buraco? E forte daquele jeito!
Apesar do meu ataque, ele parecia frouxo nos cascos e continuava com aquele riso de sastifação embaixo do bigode.

Enquanto juntava os apetrechos espalhados pelo meu pulo, pra preparar outro mate, ele meteu a munheca embaixo do colete e tirou dali um relógio de ouro, um cebolão mui lindo.
-São quase media noche, daqui a pouco o velho Fonseca deixa esse mundo como viveu nele, na trapaça, calavera, ladrão, sem vergonha, e por último, agora, faz mais uma caloteragem, deixa o filho para pagar uma conta que ele fez comigo anos atrás.
-O senhor deve ter direito de dizer tudo isso dele. Está sentindo que não vai receber o que lhe deve, mas o que ele lhe deve ?
-Se lhe disser, o senhor assume a dívida?
-Mas que pergunta.!!! O senhor havia dito que eu era herdeiro da dívida e agora, pergunta se fico com a dívida? Não lhe entendo, que conversa mais desparceirada.
-Sei que é difícil entender - disse ele, coçando o bigode engraxado - bem que gostaria de transferir a dívida, mas não posso, afinal, o que esse porqueira desse teu pai me deve vai pagar de qualquer jeito, vivo ou morto. A dívida dele é intransferível, a pantomima que ele tentou contigo foi inútil, não se logra o Diabo!
Ele disse aquilo dum jeito que nem achei estranho, tava engolindo um gole meio amargo do mate. Mas tive que rir - o senhor poderia parar com esta broma, sou novo, mas conheço a vida. O senhor é o Diabo? E Diabo, falando em paz! - tive que rir.
-Falei! Não se engana o Diabo. E, é na paz que se trama a guerra...O senhor não sabia disso?
O sujeito era maneiroso mesmo, me chamara de senhor! E nisso ele tinha razão, não é na guerra que se trama a guerra! A profissão de cobrador tem que ser de gente esperta, e pra receber de credor ruim, às vezes, um argumento como aquele poderia até ajudar, inda mais quando o credor era unha de fome que nem meu velho.
-Ah! Então, quer dizer que o senhor é o Diabo!!! - comentei com deboche na voz. - e me aparece aqui todo pilchado, pra cobrar o quê, de meu velho ?
-Aquele calavera, lá dentro, me deve a alma...
Buenos meus amigos, larguei a cuia quase engasgado, me veio uma risada tão forte que me sacudiu pra todo o lado.
Todo mundo é bobo, pelo menos uma vez, um dia na vida. E aquele cobrador bem pilchado queria que aquele fosse o meu dia ou a a minha noche, já que essa prosa de hospício se dava ali, de noche, na cozinha da minha finada mãe, que Deus a tenha.Me dera conta que ele era esperto, rápido na defesa, meu pulso ainda doía, mas... levava aquela broma meio longe demais, ora, o Diabo mateando comigo... Inda por cima quase leva uns tabefes meus, só não dei na cara, porque tinha errado o bote, e ele se safara bonitasso!
Ele tinha mesmo uma cara de malevo, usava um perfume meio enjoativo. Mas daí a ser o Diabo...Como se tivesse lendo o que eu pensava ele retruca:
-Quer dizer que se aparecesse batendo asas, fedendo a enxofre, o amigo iria acreditar? Não dizem que uma das melhores artimanhas do Diabo é fazer crer que ele não existe? Pouco me importa se acreditas no que eu digo. A alma do teu velho me vale pouco mais que o traque de uma mosca, e é minha. Agora, a alma do amigo me parece mais interessante!!!
-Mas não tou dizendo!!! Fosse quem fosse, o tal, na minha frente, tava abusando da minha paciência. Andava atrás de levar umas três facadas do outro lado da cara, só para emparelhar os dois lados! Por muito menos eu desossara, no seco, uns dois ou três índios metidos a sebo. E maiores que ele.
Tinha errado o primeiro coice, mas não ia errar outro. Ele que não continuasse naquela prosa sem futuro, tava pronto pra pular de novo, só que dessa vez não iria errar a patada .
Resolvi interromper aquela prosa sem pé nem cabeça... O tal cobrador era loco das idéias. Era um loco bem pilchado, tá certo, mas era loco! Com loco a gente não pode discordar, mas, também, não pode ser muito mole. Tem que seguir o pensamento dele e agir dentro da conformidade com os pensamentos dele, até ele fazer o que a gente quer.
-Senhor Diabo -disse eu forçando uma senhoria e dando crédito aquele prosa dos infernos, pra ver se chegávamos numa conversa com propósito. Queria terminar aquele assunto, acender uma vela pro morto e ir embora, no caminho encarregaria alguém de enterrar aquele que um dia fora meu pai - o senhor veio aqui cobrar uma dívida que, como o senhor diz, não há como negar, o velho Fonseca vai pagar de qualquer jeito. Assim, o senhor não tem nada mais o que fazer aqui! Se me fizer o favor, pode pegar o caminho do inferno e voltar pra sua casa, pois, mesmo depois de morto, essa casa inda é do meu pai, e se senhor tem algum direito aqui dentro, vá buscar na justiça ou na injustiça no seu tribunal, cobre isso por lá, talvez lhe paguem com juros!
Pois, amigos, pra meu espanto e quase susto, ele concordou e foi levantando aos pouquinhos. Não sem antes dizer :
-O amigo tem razão, não posso tomar mais o seu tempo, mas a minha oferta está de pé, o que o senhor quiser em troca da sua alma.
-O senhor já fez sua oferta. Boa noite, passe bem, disse eu levantando do banco e apontando a porta pra ele.
Até aquele instante, pra mim, tava tratando com um louco metido a cobrador.
-Vou aparecer de quando em vez para renovar a minha oferta, buenas - disse, e acertou o barbicacho, enterrou o chapéu na cabeça girou os calcanhares e saiu batendo as esporas no terreiro.
Ainda ouvi o cavalo dele dando um relincho, o barulho dos cascos no capim, o latido agourento do cusco, o ruído do vento e despois o silêncio, e o vento. Foi aí que me deu um arrepio no cangote que aparece cada vez que penso naquela noite.
-E o teu velho? -perguntou Benedito - morreu ?
-Tinha morrido, antes do cobrador ir embora.
-E ele?-perguntou Índio, acendendo outro palheiro -não apareceu mais?
-Tem sim, tem sim, tem aparecido de vez em quando... Já senti aquele perfume no pescoço duma dama, num guri tentando me vender uma loteria e numa cancha reta... A proposta dele inda tá de pé, e se algum de vocês tiver interesse...







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