sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Os Homúnculos



A tradição de construção de servos artificiais, criaturas híbridas, participantes do reino vetegal-animal é muito antiga. Na América Latina a única referência literária sobre seu uso é do cubano Alejo Carpentier na sua novela Reino desse Mundo, obra que relata o reino mítico de Henri Cristophe, no Haiti, que construiu seu palácio com tijolos embebidos em sangue de touros negros.

Para criar um desses servos, comprei as sementes de um chinês abjeto, cuja loja recendia a mofo adocicado, comerciante de artigos raros, ele mesmo não sabia para que servia aquelas sementes, o que me deixou satisfeito, pois se soubesse além de tornar o preço delas exorbitantes as colocaria na sua galeria de objetos para consumo especial que incluía fetos de todas as espécies, inclusive humanos.

Plantei uma das sementes no período certo de acordo com a lua e a posição de determinados planetas, não vou revelar aqui a receita completa, pois aqueles que tiverem interesse em criar um servo assim, terão que procurá-la como procurei.

Três meses era o tempo que ela levaria para brotar, crescer e ser colhida. Da colheita posso falar um pouco, pois essa também é citada no livro de Carpentier.

Ainda em seu estado vegetal o futuro servo não pode ser retirado da terra por mãos humanas, pois mataria aquele que fizesse a colheita. Ela só pode ser colhida por um cão. É importante que o cão seja forte. Precisamos prender bem a planta com um corda e amarrá-la no pescoço do animal, esse, precisa ser espancado e ao correr, caí morto e arranca a planta que sai da terra com um pequeno grito.

Deve-se lavá-la imediatamente e envolvê-la com um pano verde e colocá-la para dormir durante três semanas em uma pequena caixa de cedro, com tampa, de no máximo dezoito centímetros de largura, por dez centímetros de profundidade, ou seja, pouco maior que o Homúnculo.

Esse, que já está adulto, mede, em torno, de dezesseis centímetros de altura e deve ser batizado (força de expressão), pois não existe cerimônia nenhuma para isso, basta dar um nome a ele para que ele, ao acordar, saiba seu nome, assim como o de seu dono e senhor.

Ele deve ser alimentado com pedaços de folhas, sementes, pedaços de frutas, coisas que se daria a um pássaro de tamanho médio, jamais alimento de origem animal.
Para que eles servem? Para dar respostas sobre os aspectos da vida de seu dono. São oráculos perfeitos, respondem com a voz grave a qualquer questão proposta desde que seja de formulação simples. Ficam aborrecidos se são interrompidos em seu sono (dormem muito) com perguntas cuja formulação é complexa, adoram perguntas cuja resposta seja ou um sim ou um não.
Podem viver muito, desde que bem tratados e estejam sozinhos...
Descobri que era assim, depois que fiquei com pena do ar triste do Senhor Robert, esse era o nome que dei a ele, quando o vi o sentado na beira da caixa onde residia e me pareceu que estava sofrendo de uma terrível solidão. Resolvi plantar uma companheira para ele. Nunca imaginei que estivesse cometendo um erro.
Vou abreviar o período de plantio até o dia que a nova criatura acordou em sua caixinha no meu armário, ao lado do Senhor Robert, eu havia lhe dado o nome de Senhor Knop e colocara nele uma pequena coleira de metal para diferenciá-lo do outro, pois eram exatamente iguais. Foi também quando percebi que não havia seres do sexo feminino nessa espécie de criatura. Porque são apenas da espécie masculina também não sei. Acredito que como são seres artificiais não necessitam se reproduzir Mas a curiosidade em saber qual seria o resultado daquele encontro me instigou a continuar a experiência.
Antes não tivesse feito.
No momento que se viram os dois se odiaram e começaram a brigar. Primeiro foi comigo, e foi a vez deles me perguntar, e perguntaram quase simultaneamente, se eu já tinha um porque queria dois. Não adiantou explicar que esperava que um fizesse companhia a o outro que eles não entenderam ao que eu dizia e se agarraram a socos, caíram da prateleira e vieram rolando pelo chão, correram pela sala e entraram na cozinha, no início, achei engraçado duas criaturas minúsculas, barbudas, do tamanho de dois pepinos,brigando pela casa. Mas comecei a ver que era sério quando um deles pulou para dentro da caixa de talheres, pegou uma faca e partiu em direção ao outro disposto a matá-lo. Consegui intervir a tempo e desarmá-lo.
A solução que encontrei, foi encerrar o Senhor Knop em uma gaiola vazia e levar o Senhor Robert, esperneando, para a sua caixa, repreendendo sua atitude e exigindo dele um pouco mais de juízo que o outro, já que era o mais velho. Mas ele estava furioso e reclamava numa língua que deve ser falada no reino subterrâneo das plantas-animais, que eu não entendia nada, mas pela veemência sabia que ele queria acabar com Senhor Knop.
Depositei-o em sua caixa, e a muito custo consegui fechá-la colocando um pequeno peso em cima sob os protestos dele naquela língua estranha, que tinha um tom de umidade. Acreditei que com pouco de sono faria com que ele recuperasse o bom senso e aprendesse a tolerar a outra criatura, afinal eu o criara para que não ficasse sozinho.
Depois do tumulto a tranquilidade voltou na casa e fui fazer o que tinha que fazer, sem pensar mais na dupla de homúnculos brigões.
Pois eu estava enganado se imaginava que houvesse a possibilidade de trégua entre eles.
Acordei de madrugada com o ruído de vários objetos quebrando, aparelhos ligados, demorei a identificar de onde provinha o ruído, era da minha cozinha. Vesti o roupão, achinelei os sapatos e corri até lá.
A desordem era completa, havia várias coisas espalhadas pelo chão, copos quebrados, xícaras espalhadas, panos, alguns aparelhos elétricos ligados, incluindo o moedor de carne. E, foi ali, no moedor que vi os dois, ainda para fora dele, aos socos, tentando empurrar um ao outro para baixo.
Tentei agarrá-los, mas eles gritaram que não me metesse não os obedeci, e tentei puxar o Senhor Robert para fora, não consegui, ele estava preso no êmbolo que o arrastava junto com o outro, tentei desligar o aparelho e não houve maneira. Fui atrás da tomada, mas quando a encontrei ouvi um gemido e um ruído de coisas esmagando, voltei para a máquina e ainda vi o rosto barbado do Senhor Knop rindo e sumindo dentro do aparelho. Na ponta do moedor começaram a sair os pedaços do vegetal que há poucos instantes atrás era o Senhor Robert e logo a seguir Senhor Knop.
Não havia o que fazer a não ser esperar o moedor terminar o seu serviço, recolher aquela pasta gelatinosa que saia dos furos e jogar fora no lixo orgânico.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O homem queria matar gatos



Era a primeira vez que ele era chamado ao gabinete do prefeito. Na cadeira em frente a sua, um conhecido vereador e, atrás dele, o assessor, sujeito baixinho, cinza, rosto comprido, parecia uma ratazana magra e mal vivida. Feitas as apresentações, Vicente aguardava o prefeito começar o assunto. Funcionário público de carreira, veterinário, não gostava do prefeito e do vereador e não os respeitava.Entravam e saiam do serviço público ao sabor da política, enquanto ele permaneceria.
Mas o que eles desejavam, não tinha menor idéia. Nunca o haviam chamado. Jamais saíra do controle de pragas onde mantinha a função com algumas raras dedetizações para matar cupins. O assunto não deveria ser sobre infestação de cupins na prefeitura.
Pouco interessava a conversa partidária deles. Esperando encerrar, assentava com um sorriso aqui, outro ali, até que o prefeito pegou sua ficha na mesa para lembrar o seu nome e posto.
- Pois é doutor Vicente, o senhor conhece o nosso vereador, homem do partido, esse homem me ensinou a fazer política - disse o prefeito com um sorriso profissional.
O vereador mexeu a mão como se desdenhasse o elogio e sorriu também profissionalmente.
“Se merecem - pensou Vicente- um elogia o outro, e o outro, elogia o um. Política é isso, a arte de elogiar o próximo e desprezar o distante”.
-Ele trouxe ao gabinete uma solicitação séria de seus eleitores, e preciso de opinião técnica para tomar a atitude correta. Mas prefiro que o nosso vereador historie a situação e, talvez o senhor possa nos ajudar a solucionar o problema.
O assunto era incômodo. Quando a palavra eleitor entrava em campo eles faziam qualquer coisa. O vereador, homem volumoso, boca mole, olhos bem espertos começou a dizer a que viera:
-Trata-se do seguinte, senhor Vicente, tenho recebido inúmeras queixas dos frequentadores do parque da Redenção sobre o excesso de gatos que andam por lá. Mais de mil!
-Mais de mil- repetiu o ratazana, assessor do vereador.
Alguém fizera o censo dos gatos do parque? Ele lembrou de um ecologista que conhecia, que todo final de semana viajava a Cambará do Sul para contar os papagaios da região e voltava denunciando o sumiço de alguns deles. O ecologista inventara um sistema volumétrico capaz de encerrar em uma determinada área, no ar, quantidade suficiente de papagaios em voo, possíveis de serem recenseados. Alguém fizera o mesmo no parque, mas gatos? Quem defendia gatos?
-Mas gatos?Quantos gatos?
-O pessoal cria o gato, fazem gatinhos e não tem onde deixar, larga no parque - explicou o prefeito - e eles começam a incomodar a população, as crianças, querem comida.
-Alguns estão se tornando selvagens - completou o assessor - tem a história duma senhora que foi atacada por eles, e só não foi comida viva, porque um operário que passava a ajudou a se livrar dos gatos.
Ele segurou para não rir. A palavra “gatinhos” na boca do prefeito era uma agressão. Mas por mais ridícula que parecesse a conversa, eles falavam sério, “não se brinca com eleitores”, Vicente quase disse. O vereador deveria ter vários eleitores em torno do Parque, e o prefeito não o chamara para se divertir com o assunto, “gatinhos”.
Ele se voltou para o prefeito, seu chefe, eles poderiam pressionar o prefeito, mas a ele, não.
-Temos que nos livrar dos gatos - disse o prefeito sussurrando como se as paredes da sala o escutassem - respeito os animais, mas respeito também a vida das pessoas. Não precisa fazer relatório, temos que resolver a questão da forma mais simples possível, parece uma situação de saúde pública - falou, olhando para o vereador, o vereador concordou inclinando a cabeça, o assessor fez o mesmo - não vamos chamar a secretaria da saúde para resolver, não precisamos avisar os gansos, temos que resolver de maneira discreta.
“Os gansos, os gatos. A sala estava cheia de animais incômodos e gato não vota”.
-Sim, mas o senhor quer que eu faça?
-Simples, que os tire de lá, sei lá, dê um jeito.
-Mate de preferência!
A frase dita com crueza repercutiu na sala como uma bomba, o prefeito se coçou, o vereador olhou para lado, e o autor da frase, ventríloquo dos dois, a ratazana assessora, manteve a afirmação encarando Vicente. Só poderia estar apoiado, para falar aquilo e não ser contestado, ou seja, era o desejo do prefeito, também, matar os gatos. Sumir com o problema é mais fácil.
Ignorando a afirmação, Vicente dirigiu-se ao prefeito que se levantou para olhar sua mesa.
-Senhor, a minha função não é matar animais, no máximo controle de pragas.
-E como que o senhor chama isso?-guinchou o ventríloquo.
-Vicente, não estou sugerindo que mate os gatos, o Laureano sim, ele estuda a situação desde que surgiram as reclamações no gabinete. E, segundo apurou, retirar os gatos seria muito difícil, pegar um a um, isso chegaria na imprensa e seríamos ridicularizados, dar comida envenenada poderia matar os diversos animais que existem no parque, além do que, os mendigos poderiam pegar essa alimentação, e aí sim, eu teria um problema maior.
-Mas, não entendi, se não se pode remover os gatos, o que podemos fazer?
-Quem falou em matar os gatos foi o Laureano, tenho a curiosidade de saber que alternativa teríamos, por isso o chamei, o senhor é o técnico.
Era isso? Ele queria um tipo de veneno específico para matar apenas gatos, sem afirmar que queria, e não colocar isso em documento público. Obrigava-o a fazer, sem o obrigar formalmente.
-O Laureno está à disposição, o vereador põe a sua infra-estrutura para auxiliar - disse o prefeito apressando a voz e dirigindo-se ao vereador - amigo, sei que o Vicente vai usar o seu talento e inteligência e resolver, agora, me desculpem, tenho outra audiência, estou atrasado, com licença, fiquem a vontade, o gabinete é de vocês.
- “O quê? Ele vai embora e me deixa na mão desses facínoras?”- pensou Vicente.
-Também vou indo - avisou o vereador se levantando, assim que o prefeito saiu - foi um prazer. O senhor fala com o Laureano, ele tem estudado o comportamento deles, com exaustão. Certamente lhe ajudará, podem ficar aqui, também tenho de laçar alguns eleitores – disse ele com um sorriso irônico e saiu na mesma velocidade do prefeito, batendo a porta do gabinete.
Os movimentos haviam sido coreografados, antes - percebeu Vicente. Nenhum dos dois poderia ser responsabilizados. Ou seja, a responsabilidade agora era dele. Isso é, se ele resolvesse assumir a responsabilidade. Ás vezes, uma única sujeição consegue estragar tudo de valor que fizer em sua vida. Ele,também, sairia tão rápido dali que o problema voltaria para os braços do cara de rato. Mas havia outra porta, iria aos jornais denunciar aqueles marginais. Não, essa não. Tinha apenas aquela conversa informal e se não fosse ele, arranjariam outro. Ele precisava saber mais e, então, os denunciaria. Iria acompanhar aquela ratazana e depois avisaria “todos os gansos”.
A ratazana começou a falar imediatamente:
-O senhor não acreditou quando disse que uma senhora foi atacada lá, não é?
Vicente nem se deu o trabalho de responder, mexeu a cabeça concordando.
-Pois é verdade. Acontece que tem um sujeito lá que controla os gatos, o pessoal do parque o chama de o Homem Gato. É um mendigo, ele pediu esmola pra mulher, ela não deu e ainda disse uns desaforos pra ele. Pois, logo em seguida, os gatos a atacaram e quase a mataram de susto.
Naquele momento Vicente fez um rápido balanço de sua vida, lembrou o que fizera e o que deixara de fazer para chegar ali, e ficar ouvindo um sujeitinho, do terceiro escalão querendo lhe obrigar a matar os gatos de um parque. Um rato magro e feio, não poderia gostar de gatos.
-Ele governa os gatos, eles tomam conta do parque para ele, ele sabe tudo que acontece lá, dizem que ele conversa com os gatos - informou o assessor baixando o tom de voz para que o Homem Gatos não o escutasse.
Vicente, sorriu com aquela conversa insana, olhou o relógio, finalmente, quase na hora do final do expediente, ele tinha uma boa desculpa pra se livrar do Mickey.
-Seu Laureano, sei, o problema é grave, o prefeito falou, o assunto está em minhas mãos.
-Nossas mãos – completou, com o rosto cinza peludo, congestionado pelo valor da missão.
-Isso, nossas mãos, mas, o senhor vê, o horário, hoje, está no final, podemos marcar para amanhã uma visita ao parque. Analiso a situação e penso numa forma de solucionar.
-O melhor é agora, de noite, é a hora que eles começam a sair das tocas-insistiu.
-Amanhã, seu Laureano, às nove horas, da manhã, nos encontramos no parque, está bem?
Desapontado, o outro foi obrigado a concordar.
-Então, até amanhã – disse Vicente saindo, sem dar tempo ao outro retrucar.
-Onde nos encontramos?-ele perguntou.
-Ligue na primeira hora da manhã e marcamos – respondeu, indo em direção as escadas.


Às nove horas ele chegou ao parque e encontrou o Homem Rato na frente do corredor central, com um jornal embaixo do braço. Vicente querendo se ver livre logo, perguntou ridicularizando o outro:
-Aonde vamos? Na toca do Homem Gato?
-O senhor ainda acha que estou brincando, não é mesmo? Pois bem, está vendo todos esses bancos no parque? Escolha um, qualquer um, pegue parte do meu jornal e vamos sentar para ler.
A proposta era insólita, mas a situação toda era insólita.
-Vamos lá, pode ser naquele banco, na sombra, ali adiante.
-Como o senhor quiser, vamos ler o jornal, que parte o senhor quer?
-Pode ser o caderno de esportes.
-Tome aqui está! Vamos sentar.
Vicente começou a ler, em poucos minutos, distraído, acabou esquecendo o que tinha ido fazer lá, quando sentiu o cotovelo do outro batendo no seu braço. Ele olhou para o assessor, o homem mexia a cabeça sinalizando para ele olhar em frente.
Vicente olhou, um gato atravessava o vão central do parque na direção deles.
-Viu só, não disse? Lá vem um deles, esse toma conta desse trecho - disse o homem sussurrando - continue lendo, como se não o tivesse visto.
Sem dar importância ao que ele dizia, Vicente voltou para o jornal e continuou lendo, não demorou alguns instantes sentiu algo roçando sua perna, olhou, e lá estava o gato ronronando, era um gato cinza com manchas brancas na barriga e parecia bem alimentado, tinha os olhos amarelos. Vicente olhou para o assessor e esse, ansioso, alternava os olhos para ele e para o gato. A esfregação durou alguns instantes, a seguir ele saiu do meio das pernas dele, olhou para assessor e para Vicente, deu um miado e foi embora trotando, atravessou o parque e sumiu no meio das árvores.
-Ele agora foi avisar os outros, quem é o senhor, e o que quer aqui.
Dessa vez Vicente não segurou o riso. Abriram a porta do hospício e deixaram vários loucos a solta, inclusive aquele ao seu lado. A idéia toda era muito engraçada, uma rede de gatos informando uns aos outros, sobre as pessoas que frequentavam o parque. Tentou imaginar que conversa teriam sobre os visitantes. Miando entre si. Trocando miados. Mas ele não tinha interesse no que os gatos poderiam estar comentando a seu repeito.
-Ele não veio em mim porque já me conhece, sabe o que eu quero aqui, não lhe disse que era verdade? O senhor ainda duvida? Pode fazer o teste, vamos sentar mais pra lá e vai aparecer outro gato, o que toma conta daquele lado lá, se ele já sabe do senhor, nem vem.
Se não aparecesse outro, era porque ele já era conhecido dos bichanos. Sim! Isso justificaria a ausência de um próximo gato. Vicente pensou que não falava aquele assunto, àquela hora da manhã, o homem era insano e sendo levado a sério. Apenas aquele gato viera na direção deles.
-Os gatos têm percepção extra-sensorial, os egípcios os usavam em suas cerimônias para saber quando um bom ou mau espírito se aproximava, eles tinham até uma deusa gata, chamada Bastet. Eles gostavam tanto de seus gatos que quando morriam mandavam embalsamar para ajudá-los e protegê-los no outro mundo. Não são animais agressivos se bem tratados, alimentados, soltos na selva voltam a serem caçadores, como aqui, é sobrevivência. Os que vivem aqui voltaram a ser gatos selvagens, com uma vantagem sobre nós, conhecem nossos costumes e maneira de agir. Pra mim, a única saída é matar, fazer uma cova grande e enterrar, controlando a população no parque, daqui a pouco ninguém mais entra aqui. Eles tomaram conta. Esse parque é deles!
- É sua opinião! Vi um gato dos mil que o senhor falou - retrucou Vicente irritado.
-É difícil acreditar pra quem não sabe como eles agem, mas estou preparando uma surpresa pra eles - disse o assessor apontando para as árvores como se os gatos estivessem lá, escutando - e, uma surpresa para quem não acredita, não imagina como fica isso aqui de noite, depois das oito da noite, a quantidade de gatos que passam para lá e para cá, nesse horário, eles começam a festa!
-Sim - disse Vicente - disposto a esquecer assunto, voltar para sua sala, cumprir o horário, lendo o seu jornal – está certo, o senhor consegue mais provas e encontramos a maneira de convencer o prefeito a exterminar os gatos, por enquanto, o que vi nem é suficiente para um laudo - concluiu, entregando o caderno de esportes. Nova decepção no rosto do outro. Que ficasse decepcionado várias vezes, ele não iria a exterminar nada! No máximo, uma infestação de cupins, mas gatos? Mesmo que o prefeito o transferisse para um posto sanitário junto a um lixão para examinar a frequência dos urubus no local, não faria, e menos ainda seguindo orientações de um maluco de terceiro escalão, pára-quedista na função pública com cara de rato e que odiava gatos.
-Seu Laureano vou indo, até outra ocasião- disse Vicente levantando e apertando molemente a mão do assessor,depois, deu as costas saiu na direção à garagem onde estacionara o carro.


No outro dia, às sete da manhã quando terminava de fazer a barba do lado direito do rosto, o telefone tocou e a mulher atendeu. Um segundo depois ela estava alterada na porta do banheiro.
-O prefeito no telefone! Quer falar, agora, com você.
-O quê?
- Está lá, no telefone.
Ele passou a tolha para enxugar o lado barbeado do rosto e foi para o telefone com o outro lado coberto de espuma.
-Sim, senhor?
-Por favor, doutor Vicente, venha no meu gabinete urgente, agora, saia de casa e venha aqui!
-Em quinze minutos, senhor.
-Dez, esteja aqui, em dez minutos.
-Está bem - ele respondeu - e outro bateu o telefone.
A mulher surpresa, esperava explicação - o que ele quer contigo?
-Me transferir para um posto sanitário junto de um lixão para contar os urubus que pousam lá - disse ele brincando, esperando a queixa do prefeito pela pouca atenção que dera ao assunto, mas que ele não iria recomendar a morte dos gatos não iria, fosse de um ou de mil.

Ele correu para estar em menos de quinze minutos no gabinete, quando entrou porta adentro, suando, o vereador estava lá, com a cara amarrada. Queixa na certa!
-Sente-se, senhor Vicente.
O tom de voz não era bom. Ele começou contar urubus, havia o urubu cabeça amarela, o urubu rei, o cabeça vermelha, o urubu preto...Todos gostam de carniça e de um belo lixão.
Iria receber um puxão de orelhas pela pouca atenção que dera ao assessor.
-O senhor sabe o que aconteceu?
“Desde que falamos antes de ontem, o mundo deu duas voltas , e nesse período várias coisas acontecem, mas ao que o senhor se refere, especificamente?”
-Mataram o senhor Laureano. Essa madrugada.
-O quê? Mas, como, onde? Por quê?- ele esperava uma advertência, mas não aquela notícia.
-No parque - completou o vereador- acharam o corpo dele, às cinco horas da manhã de hoje quando começa ao policiamento. Estava destroçado, como ficou com documentos me avisaram. É isso! Daqui a pouco vou ser chamado a dar explicações, a mulher dele disse que ele estava a meu serviço filmando os gatos do parque, não demora a imprensa está atrás de mim, concluiu, olhando para o prefeito, numa clara indicação que sobraria para ele também alguns pêlos de gato.
-Ele tem duas alternativas - reagiu imediatamente o prefeito - se assumir, que o sujeito...
“Agora, era o sujeito! O assessor não tinha mais nome. Que dupla de sem vergonhas!”
-estava a serviço, vai ter que explicar qual o serviço! A explicação não funciona, além de ter que pagar indenização, corre risco de processo, etc., a outra, é dizer que não sabia nada, que o Laureano tinha comportamento estranho e deve ter dado essa desculpa pra mulher, que ia trabalhar filmando os gatos do parque, coisa que ninguém vai levar a sério, o homem nem cineasta amador era - terminou o prefeito sorrindo, afastando qualquer relação com a situação.
“Sim, mas se vocês já sabem o que vão fazer, porque me chamaram?”.
-Precisamos saber o que ele lhe disse, ontem?- perguntou o vereador.
“Eles não queriam deixar buracos, tocas, no assunto, essa era a razão estar ali. Não estavam preocupados com a estranha morte do assessor, queriam se safar da situação”.
-Nada de consistente - disse Vicente lembrando o cara triste de rato - preparava uma surpresa para provar que o problema dos gatos era verdadeiro. Não me disse que surpresa era.
-Então foi isso, ele resolveu filmar de noite, como disse a mulher, e alguém o pegou, roubou a filmadora, não encontraram nada com ele, nem dinheiro, só os documentos. Latrocínio. Não o mandei fazer isso, não tenho nada com isso, ele fez por que quis - observou o vereador, aborrecido
-Pra mim, o assunto encerrou - disse o prefeito, pulando fora da situação - meu mandato acaba em dois anos, se o próximo prefeito quiser mexer nisso... Eu até tenho um gato em casa, e aconselho ao vereador sugerir aos queixosos, no gabinete, que matem eles mesmos os gatos do parque. Se o assunto aparecer outra vez aqui, chamo toda a secretaria de saúde e mando interditar o Parque até descobrir que tipo de vírus atacaram os gatos. Só de imaginar que os gatos estão contaminados com vírus dos gansos ou dos macacos,dos pombos, eles autorizam o extermínio deles em massa, e a população agradece. E, acabamos com o problema. Por enquanto, vou deixar assim, para ver como fica. Ainda mais com a morte desse idiota, agora! Era isso, senhor Vicente, obrigado pela ajuda, está dispensado, tenho uma audiência em seguida, feche a porta quando sair vou trocar algumas palavras com o nosso vereador, ele me ensinou tudo de política...
Sem ficar surpreso com a rapidez que o assunto fora tratado, e o desprezo deles pela morte do assessor, agora sem nome, Vicente levantou da cadeira e estendeu a mão para se despedir.

As feições deles haviam mudado, estavam contentes, os sorrisos profissionais haviam voltado. Ele não representava ameaça. A situação controlada, ele não iria falar nada, não sabia o que assessor fazia no parque de noite.

Mas Vicente sabia de um gato, que ele conhecera no parque. E, que o homem que queria matá-los poderia ter razão sobre o que acontecia lá. Naquele momento ele decidiu que não iria para o trabalho, sairia dali e rumaria até o parque e, lá se o falecido assessor estivesse certo, algum gato o iria procurar. E, em memória do morto, iria fazer o contrário que ele queria fazer. Em vez de matar gatos, iria salvá-los.
Ele iria avisar aquele gato, para avisar aos outros gatos que eles corriam perigo, que seria melhor para a segurança deles, que se dividissem em vários parques da cidade, antes que fossem todos exterminados.

E, Vicente começou a suspeitar também, que naquela noite, haveria uma assembleia de gatos sob a coordenação do Homem Gato, no parque, da qual não participaria, mas seria bem - vindo.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Discurso sobre a invisibilidade


Enquanto a maior parte das pessoas quer estar presente, visível, o desejo de Tânia era outro. Praticava exercícios de invisibilidade.

Para ela, o que chamamos de realidade era a ponta de um enorme e profundo iceberg. Usando um analogia diferente do mito da caverna de Platão, mas em consonância com a imagem criada pelo filósofo, ela considerava a realidade o que estava submerso, e a parte externa como resultado invertido da verdadeira realidade. Alguns amigos diziam que ela era um prato cheio para os psiquiatras, o que ela desdenhava, afirmando que os psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, eram adeptos da ciência da falta de imaginação, da adaptação ao senso comum, que buscava extrair a verdadeira força contraditória que alimenta a humanidade tornando os seres humanos objetos moles, adaptáveis, como uma cadeira ou uma mesa, onde alguém poderia sentar em cima ou pisar sem obter reação. E, finalizava o discurso afirmando:

-Uma ciência que acredita ser o homem apenas produto do meio, familiar, social, uma ciência que materializa o espírito, que não faz jus ao mito de Eros e Psiquê!Não a encaro e nem a respeito como ciência ou algo para ser levado a sério.

Deixando de lado suas ideologias, o que me interessava em Tânia eram seus exercícios de invisibilidade e os progressos que conseguia nessa arte. Me impulsionava saber tudo a respeito dela, além da curiosidade intelectual, uma relação de afeto, da minha parte, da parte dela eu era visto como apenas um bom ouvinte, um amigo próximo, e várias vezes, muito preocupado com as possíveis consequências de seu comportamento temerário, em busca da descoberta dessa realidade que para ela, era tão mais verdadeira como a que a partilhamos todo o dia, e que é considerada pela maior parte da humanidade como única.

Assim, conheci algumas técnicas empregadas para adquirir o domínio da invisibilidade e que, de acordo com Tânia, a preparavam para o grande confronto com a parte invisível do iceberg. Como não compreendia inteiramente o que ela falava ou procurava, não me agradava a idéia dela querer encontrar alguma coisa numa pedra de gelo. Cada vez que pensava no assunto me vinha a imagem de uma mosca presa dentro de um cubo de gelo. Você invade uma realidade que não conhece, e ela o envolve num conjunto de diversos matizes. Eu sugeria, sempre que, antes dela entrar em locais assim, era importante saber onde se encontrava a saída.

Mas ela não prestava atenção ao que eu falava. Não procurava a saída, procurava a entrada dessa grande realidade, sair era algo, que não parecia estar em seus planos.

A realidade pode presumir uma não-realidade, se era como ela dizia, podia se imaginar que as regras dessa não realidade eram o contrário do que imaginamos como realidade, e assim, ela deveria estar preparada para enfrentar um simulacro do que vivia. Qualquer que fosse a hipótese do que ela se propunha a enfrentar, era um desafio, que eu só conseguia vislumbrar através do que ela narrava sobre seus exercícios.

Lembro perfeitamente de alguns, um deles era assim:

-Você chega em uma grande festa que conhece o anfitrião e várias outras pessoas, mas em vez de se reunir a elas, procura o primeiro grupo de desconhecidos que encontra e se junta a eles, e permanece a festa inteira com eles, no final, vai se despedir dos anfitriões, esses ficam surpresos ao falar com você, porque não a viram ali durante toda a noite.

O procedimento foi claro, ela não queria ser vista, e somava outro ganho nisso:

-Queremos ficar juntos, falar, interagir, partilhar com aqueles que são iguais em interesses a nós, isso é um comportamento reflexivo, difícil é você conseguir agir contrário a isso, se relacionar de forma intensa com criaturas que nada tem em comum com você. Cheguei a discutir isso com ela sobre esse tipo de pensamento, que se poderia levar a justificar atos absurdos. Mas ela não deu a mínima importância
às minhas observações.

E, assim, seus exercícios se multiplicavam numa série infinita de desafios, ela procurava situações de risco que me deixavam de cabelo em pé, como sair ilesa no meio de um multidão que fugia da polícia. Ela não fazia aquilo para demonstrar coragem ou incluir em sua lenda pessoal, era extremamente objetiva.

- Nesse dia fiquei completamente invisível- ela me disse- eles batiam em quem encontravam pela frente, e sai caminhando enquanto eles vinham minha direção, eles abriram a formação e passaram ao meu lado espancando as pessoas, ao meu lado! E, em mim, ninguém tocou!

Era impossível não partilhar de seu entusiasmo, claro que de forma intelectual, pois estar no meio de um multidão de desempregados, biscateiros, vendedores ambulantes que realizavam um protesto atirando pedras na polícia, era uma situação fácil de imaginar o resultado desagradável, para quem não tinha nada a ver com aquilo, entrara no conflito para realizar um teste consigo mesmo.

A Civilização de Sonâmbulos

Para ela fazemos parte de uma civilização de sonâmbulos.

-Fazemos tudo dormindo, imaginando que estamos acordados - dizia - para justificar outra série de exercícios que segundo ela, tinham relação com a verdadeira natureza de estar presente no mundo.

-As pessoas imaginam que estão acordadas e dormem o tempo todo, caminhando, falando sozinhas, descrevendo para si mesmo o que vêem e sentem ou o que vão fazer, o que temem, não tem a menor noção do que seja o silêncio. Acham maravilhoso sair de um lugar e chegar em outro sem terem sequer notado o caminho, caminham, andam, prosseguem, sonhando com o futuro, com o passado, com outras pessoas, consigo mesmo, com seus desejos, seus ódios, seus amores, é assim que vivem, sem perceber o percurso que fazem. Acreditam fazer várias coisas ao mesmo tempo e não sabem que fazem tudo em sequência.

Esses exercícios que ela designava como “lembrar-se de si”, fazia parte de um sistema que ela havia aprendido com um discípulo de Gurdjieff, o autor de Encontro com Homens Notáveis, um místico que saído do Cáucaso, percorrera a Rússia e parte da Europa, nos primeiros anos do século xx e que ensinara essas práticas relacionadas ao acordar, trazidas de um obscuro sistema sufista.

-Você vai passar uma porta, para, e se pergunta:

-Estou indo aonde? Fazer o quê?

Esses exercícios poderiam ser feitos ao caminhar na rua. - dizia ela - aos poucos, os exercícios, aparentemente insignificantes produziam resultados inesperados e permitiam começar a acordar desse sono sonambúlico.

Agora, não me perguntem onde ela anda, depois que soube que ela conseguiu atravessar portas, paredes e andar sem receio pelos recantos mais tenebrosos do universo, não que eu tenha perdido o interesse por ela, não ao contrário, ela simplesmente desapareceu para mim.

Tornou-se invisível.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ouija e a Sociedade do Anel





Depois de andar algum tempo sobre mesa, o copo revelou o nome do assassino!

O que parecia ser uma brincadeira inocente de um noite desocupada de sábado, agora se transformava num pesadelo.

Ele estava ali! Na mesa, entre nós!

Até aquele momento achávamos que o crime havia sido resultado de um roubo, mas não, a explicação estava na nossa frente, na nossa cara! Eramos tão amigos até aquele momento, e a descoberta do nome de quem cometera o crime?Agora como ficaria?

Era difícil não notar a apreensão, de todos, em torno da mesa. Os sorrisos dessas ocasiões deram lugar a um silêncio estranho, pesado.

Éramos sete amigos, e todos fãs da obra de J.R.R. Tolkien, e nos designávamos como a Sociedade do Anel, nas nossas reuniões quinzenais, entre os diversos passatempos de nosso grupo, como diversão, consultávamos a Tábua, quase sempre em pequenas consultas, perguntas bobas, perda de objetos, quem estava ficando com quem, quem do grupo ganharia na loteria, entre outras besteiras semelhantes. Mas, dessa vez, alguém sugeriu que procurássemos saber o nome do assassino de nosso amigo, fato que nos chocara e que não completara um mês, e de quem a polícia não tinha a menor pista. Nem esperávamos algum resultado consistente a pergunta, era mais uma diversão, com algo sério, serviria até para diminuir o impacto da morte do amigo de forma tão trágica.

Deveríamos saber que não se brinca com o desconhecido, essa era a primeira consulta séria que fazíamos à Tábua, e a resposta surgira clara, inequívoca, trazendo para todos  um problema maior que imaginávamos, e junto com a certeza que se alguém ali matara outra pessoa, seria capaz de matar algum de nós com a mesma frieza e crueldade que ocorrera com nosso amigo.

Agora, a razão do crime se esclarecia, a Tábua revelara, o nome. Porque não pensamos nisso antes? Mas como e porque suspeitar de algum de nós?

Olhando, um por um, para ver a reação que aquela revelação causava no rosto dos cinco, o assassino tirou a pistola do bolso e ameaçou matar a todos que revelassem o seu nome e invocou um dos pilares de nossa Sociedade, o juramento de silêncio!

Paralisados e sem reação, juramos de imediato que não denunciaríamos!

Nossa Sociedade tinha regras rígidas para seus integrantes, havíamos feito isso para barrar a entrada de pessoas que não nos interessavam, e uma dessas regras basilares era o juramento de silêncio, que não poderia ser infringido sob pena de morte. Quando criamos essa regra, e as outras, em nenhum momento poderíamos supor que alguma situação em nosso grupo de amigos tomasse esse rumo.

Mesmo que tudo se rompesse naquele momento, o que não aconteceu, continuamos nos reunindo, e sujeitos à regra, perdemos a espontaneidade, aquela alegria inicial e o criminoso continua ao nosso lado. Talvez, no futuro, possamos colocar nas regras da Sociedade que seus integrantes não podem matar associados, sob pena de expulsão, mas agora como ele nos vigia e nós a ele, não podemos fazer nada, a não ser continuar nos encontrando e buscar novos elementos, além da Tábua para tornar nossas reuniões aparentemente agradáveis. Estou quase sugerindo aos que não têm, que comprem armas, também, talvez assim possamos nos defender dessa ameaça permanente.

Como tenho receio que quem cometeu o crime cumpra a promessa, apenas para se proteger e, como não posso romper o juramento, transfiro para o leitor a responsabilidade de descobrir o nome do criminoso e dar divulgação a isso, resguardando os outros e permanecendo todos protegidos. Por favor nos ajude, nossa situação é desesperadora!

Indicações para descobrir o nome do assassino:


1)O nome tem uma letra a menos que o número de inocentes na mesa.

2)O nome está relacionado ao título desse relato.

3) A forma de se obter o nome, nem sempre é indo em uma direção.



segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Uivos

A palavra superstição tem a sua raiz no latim e significa originalmente sobrevivência, por isso, ser supersticioso não mais é do que procurar sobreviver observando certas regras aparentemente absurdas, desde as mais simples, como não passar embaixo de uma escada, até as mais complexas como não dizer o nome de um determinado demônio, pois ele pode ouvir e resolver aparecer para beber alguma coisa com você.
E talvez você não saiba o que oferecer a ele.

Juventude


 Alguns anos de pesquisa, nas suas mãos, naquele pequeno frasco. Ela olhou pela janela do laboratório e lembrou dos percalços para conseguir chegar até aquele pequeno frasco. Gastos, riscos que sofrera, como aquela quase denúncia de uma funcionária que a flagrara tirando líquido, sem autorização, da espinha de uma paciente. E agora o frasco na sua mão anunciara o que ela tanto buscava, a juventude eterna!
Não havia erros, testara aquilo exaustivamente e, em segredo, em animais de várias espécies,em desconhecidos que não sabiam que eram objetos de testes, nada, nenhuma contra-indicação, perfeito. O frasco continha a paralisação da decadência, a beleza perene.
Ela sabia que as perguntas seriam inevitáveis: -Como você consegue manter essa aparência, sempre fresca, suave e, essa pele? Sem rugas, sem marcas de expressão, não tem marcas no pescoço, mãos, joelhos? Tem pintado o cabelo? Parece ter trinta anos, qual é a sua idade mesmo? E as respostas de tão repetitivas com o tempo, e a questão toda era o tempo, se esgotariam:
“Tenho alimentação equilibrada, faço muitos exercícios, me cuido, uso uma infinidade de cremes”.
E quando as respostas esgotassem sabia que a aguardava a inveja, depois o medo e depois a raiva, ninguém tolera ou aceita muito bem a beleza nos outros e acredita que a merecem da mesma forma, e a querem ter para si como se fosse simples tirar ou pegar algo imaterial de um lugar e colocar em outro, quando não em si, entre seus pertences. E, quando não conseguem, costumam destruir aquilo que não podem obter ou não entendem, principalmente a beleza duradoura.
Ela teria que sair dali, começar nova vida, esquecer os parentes, amigas, amigos, e os documentos? O que fazer com os documentos? Teria que adquirir uma nova identidade. Deixaria de ser a mesma pessoa para se tornar outra. Ser outra pessoa, viver outra realidade que felicidade lhe traria?As incógnitas de sobrepunham.
“Você não é feliz, como é? Seria feliz sendo outra pessoa?”
Ela se perguntou e não soube responder..
Estamos tão acostumados na infelicidade que quando nos descobrimos felizes, estranhamos, vivemos melhor dentro da dor, das dificuldades, das angústias, das ausências, do que fora delas. Estamos sempre separados, divididos, incompletos, faltando alguma coisa.
Ela sabia que todas as contradições eram sombras aparentes e tinham o propósito bem definido de acentuar a existência da beleza e da felicidade, mas compreender isso não significava apreender isso, e ela agora tinha em suas mãos, o remédio, a solução. Ela sabia que havia conseguido. Mas não poderia fugir de pagar o preço pela conquista, que era irrisório se comparado com qualquer outro objeto, coisa ou desejo, material ou imaterial que um dia pudesse ter.
A busca da beleza, da juventude eterna parecia ter sido uma constante na humanidade, a arte, as aspirações dessa busca pareciam se consagrar como um desejo sempre presente na história, mas a conquista não se fizera materialmente a não ser através de um quadro, uma pintura, uma estátua, um personagem, um filme, uma foto.
Mas essas fórmulas de perpetuação eram falsas, com o tempo, o monstro da velhice não estaria estampado na imagem, como em Dorian Grey, ao contrário, estaria no modelo, vencido pelo avanço dos dias que o distanciaria daquela imagem original de tal forma que esta se tornaria irreconhecível. Monstros do que foram um dia, caricaturas mal feitas de si mesmo, aquilo, mais que qualquer outra coisa, a assustava, aterrorizava.
Ela sabia se deixasse, como ficaria velha, onde começaria a decadência. O que existe de bom na velhice?Para quem vive e para outros?
Rejeição, abandono, limitação, numa sociedade que cultiva, monta e vende seus padrões de beleza na juventude, ser velho é não ser amado, querido.Tolerado, se consegue pagar para ser.
Agora ela possuía a capacidade de vencer o tempo. Ela sabia se ela bebesse aquele pouco líquido não haveria retorno, manteria a mesma aparência por anos a fio. Havia pensando no assunto milhares de vezes durante toda a pesquisa.
E, agora, chegara a hora, o minuto, o segundo, a decisão.
Depois de alguns instantes ela abriu a porta do cofre e tornou a guardar o tubo que tinha nas mãos, talvez outro dia, afinal, o tempo para ela era infinito.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Insônia



      “Vizinho são três hora da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse:”Entra   vizinho. E come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos cantar e a bailar, pois descobrimos que vida é curta e a lua é bela”.  Rubem Braga- Recado ao senhor 903


Você descobre que não mora sozinho quando mais um vez a insônia o assalta e ouve no apartamento acima do seu o som de um sapato de salto alto andando sem direção definida. Três horas da madrugada, alguém arrasta um objeto que ringe, jogam bolinhas pelo chão que percorrem todo o apartamento, e você sozinho na cama acompanha os trajeto daquelas bolas percorrendo o assoalho acima de sua cabeça.

"É demais” - você pensa- hoje não vou aguentar isso, vou lá descobrir quem está morando nesse apartamento e que não respeita o horário de silêncio do prédio".

“Vou dizer a eles: -Tem alguém no andar de baixo tentando dormir e não consegue, de tanta coisa que vocês arrastam, atiram, batem nas paredes, jogam no chão”.
 Queixar-se ao omisso do síndico não vai adiantar nada, é melhor ir, na hora, reclamar, pode ser que assim aprendem a respeitar os vizinhos...

E você se pergunta: “-Quem será esta gente que está morando lá?

Você não sabia que o apartamento havia sido alugado, depois do sumiço dos antigos moradores. “Não pára ninguém nesse apartamento está sempre para alugar, vender”, o dono lhe disse certa vez que queria se desfazer dele por qualquer preço. Você nem perguntou porque, o assunto não lhe interessava.

“Agora é um assunto meu! Chega de preguiça! E, essa insônia... troca de roupa e vai lá em cima, reclamar! ” - você ordena a si mesmo.

Em poucos minutos está vestido, olha no espelho, ajeita o cabelo, e parece que o barulho aumentou, parece que estão fazendo uma festa, uma festa! Uma festa! As três da manhã! Será que você é único nesse prédio a notar esse desrespeito?

-Vai acabar agora!- diz você pra você, subindo as escadas.

Bate na porta repetindo em voz baixa o que vai dizer:

-Será que poderiam  fazer um pouco menos de barulho... tem gente...

Mas não consegue concluir o que ia falar, a porta se abre e uma mulher lindíssima vestida com roupas íntimas, usando saltos altos, fala com você com voz mais suave e sedutora que você já ouviu:

-Oi vizinho, que bom que veio para nossa festa, estávamos o esperando, não quer entrar?

O convite era non sense puro. Você tinha certeza que não era sonho porque sofria de insônia e, nesses casos, sente-se todo o peso do corpo revirando na cama, o lençol que gruda, arranha, o travesseiro que fica alto,que fica baixo e baixo fica alto, respira mal, os olhos doem, mas mesmo assim, não consegue fechá-los.

Mas não foi o convite dela que o deixou maluco, foi olhar para dentro do apartamento, uma montanha de coisas atiradas por todos os lados, pareciam roupas, lixo acumulado e aquelas pessoas dançando, caminhando no meio daquilo como se não os incomodasse.

Sem ação você olha para ela como se os olhos dela pudessem explicar o significado dos dançarinos bêbados, tontos,  aquela hora da manhã. E os olhos dela  e a boca reproduzem o convite. Na sala,  um dos vizinhos que  havia sumido, dançava desajeitamente, parecia um boneco enfiado numa roupa errada, mal ajustada.

-Não, grato - foi o que você consegue balbuciar- estou com sono, será que podia baixar a música?

-Quando quiser aparecer, a festa continua sempre, a qualquer hora! - voltou a falar a mulher - com aquela sua voz suave e sedutora- nós gostamos dos vizinhos.

E você vira-se, contorcendo todo o corpo e pula os degraus da escada em direção ao seu apartamento. Nem fica para olhar ou para saber se a mulher fechou a porta atrás de si. Por muito pouco você quase cedera ao convite.

Há convites que não devem ser aceitos.

Você deita outra vez na cama depois de certificar, várias vezes, que porta da rua estava bem trancada.

Sem conseguir dormir você continua acompanhando com os olhos no teto os movimentos de cadeiras, pés rápidos, pedaços de coisas caindo no chão, algumas batidas secas, de madeira e metal, outras batidas abafadas, como corpos tombando, e as bolinhas cruzando todo apartamento, risadas que pareciam ser dadas junto ao piso, apenas para você ouvir, batidas de copos, batidas de copos, batidas de copos e música, muita música, mas música que você não conhece.

Então, espera com ansiedade o dia amanhecer e a imobiliária abrir  para entregar as chaves do seu apartamento. Sairia no mesmo dia, não passaria mais um noite de insônia com aquela festa de espectros em cima da sua cabeça.

Por curiosidade, pergunta ao funcionário sobre o apartamento acima do seu.

-Ainda está para alugar. Ninguém fica lá muito tempo-responde ele com indiferença.

-Não sei, mas me parece o contrário.

-O quê?

-Não, nada, acho que ando meio cansado, tenho dormido pouco, vou sair de férias.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Sapo, falando com os mortos


Dizem que temos as mesmas possibilidades dos camaleões, adquirimos as mesmas cores de nosso entorno, nos tornamos iguais ao meio ambiente, nos tornamos sempre o que queremos nos tornar, enganamos a nós mesmos, então somos capazes de enganar aos outros, não é mesmo? Aconselho sempre a quem escreve ou deseja escrever e até mesmo viver: “cuidado com o que você escreve!” Tem gente que afirma que escreve coisas que os mortos lhe ditam. Os mortos falam pouco, quase nada, quando muito sussurram para poucos, os vários mortos ou eguns, que encontrei numa jornada que fiz a Shambala me disseram isso. Os mortos ficam algum tempo parados para depois dividirem o seu corpo como no mito de Ísis e Osíris e não permanecem o tempo todo, inteiros para contar ou ditar alguma coisa.

Lembram-se das Sibilas, do templo de Delfos que quase morriam quando ouviam o outro mundo? Difícil lidar com os mortos, é mais fácil lidar com o desconhecimento e ignorância dos outros que com eles.

Sobre realizar pesquisas com realidades aparentemente adjacentes para escrever coisas que não conhecemos, testei essa possibilidade quando escrevi um livro para crianças chamado Eu, o Sapo.

Como precisava de alguns elementos necessários para a construção desse texto fui viver algum tempo em um pântano junto com um lagarto e deixei que a natureza da região agisse sobre mim, em pouco tempo eu possuía aquela cor verde musgo natural e coaxava como qualquer rã ou sapo da região. Não era de todo infeliz e fui bem aceito por eles e, em pouco tempo, fui considerado um igual.

Tive que abandonar a experiência depois de dois meses e só não me tornei um sapo verdadeiro porque minha esposa industriosa e cuidadosa comigo, raspou o limo que eu havia adquirido e fez com que eu retornasse ao convívio humano, o que me levou a imaginar também alguns paralelismos.

Os seres humanos não estão muito distante dos sapos, a maior parte vive na lama, aos pulos, botam ovos e se acham bonitos, olham mais para os lados do que para si mesmo ou para frente...

Mas o que eu havia buscado naquele reino, encontrei.

Escrevi o meu relato e hoje ainda coaxo um pouco para não perder a prática.

Mas, o pior para mim ainda são as noites de verão quando fico quase louco ao ver aquelas mariposas em torno das lâmpadas e tento agarrá-las pulando, e não consigo.

O Cobrador


                                       -Como é o teu nome?


-Tava trabalhando pros lado de Bagé, quando chegou a notícia que meu velho queria me ver antes de morrer ...Por mim, que se terminasse como tinha vivido, na perdição, sem ninguém do lado. Fazia anos que não via ele, desde de gurizote quando saíra do nosso rancho, despois da morte de minha mãe, que se finara de desgosto.
Era um porquera, sempre fora, e duvidava muito que tivesse mudado...Pois, mesmo ansim, sabendo quem ele era, não sei o que me deu, botei o chapéu na cabeça, encilhei o matungo e meti as patas na estrada. Dois dias de viagem.
Fui contrariado, pensando no quanto sofrimento aquele tipo que se dizia meu pai tinha causado a nós. Talvez, até fosse bom encontrá-lo depois de tanto tempo, ia dizer umas verdades pra ele levar pros moradores do outro lado.Eram os pensamentos que povoavam a minha cabeça, mas nem sempre as coisas acontecem como a gente espera.
Cheguei, no rancho, no que restara do rancho, eram umas ocho de la noche. Noite fria e escura, ventosa. Tudo no rancho, o que restara dele, tava no empenho, isso eu sabia, ninguém precisava dizer .
Ele vivera empenhando a terra, dessa vez não ia ser diferente. Depois da morte dele, com certeza, levariam das telhas ao cisco do terreiro .
Alguma pessoa caridosa deixara um candeeiro aceso no quarto. Foi o que vi, assim que apeei do cavalo.
Pois, como esperava, ele tava solito. E se finando. Um fiapo do que fora. Me reconheceu de vereda, apesar da luz rala. Espremendo o resto de vida que tinha no corpo tentou mostrar contentamento com a minha chegada e gaguejou no meio de uma tosse rouca:
-Meu filho, meu filho, inda bem,inda bem que tu veio...
Não sei ...
-Não tenho direito de te pedir nada, meu filho... - Mas pela tua mãe...
Ele quase não conseguia falar, engasgava nas palavras e tossia, dum jeito bem ruinoso, dava pena. Dava pena ver aquilo que fora meu pai, orgulhoso, gritão, agora, no leito de morte, na minha frente, virado num trapo, chiando no peito, se espremendo pra conseguir falar.
-Vou te pedir um último favor ....
“Pede de vereda, antes que eu vire as costas e te deixe morrer como tu mereces” -pensei, mas não disse.
Juntando as forças, ele falou tossindo:
-Não tenho direito de pedir... mas me ajuda, pela tua mãe..
Se ele não tivesse invocado o nome da minha mãe, não sei...
-Vou morrer antes da meia noite e tem alguém aí que vem cobrar uma dívida. -que não posso pagar... se eu morrer antes, ele não pode me cobrar. Me ajuda, meu filho, em nome de tua mãe! ...não deixa ele entrar aqui...
E tome tosse...
Vocês me conhecem !
Não sou homem de negaciar ajuda e inda mais numa situação daquelas, apesar de tudo, era meu pai, e me pedia pouca coisa...Não queria falar com um cobrador....E quem é que gosta de cobrador ?
Não tava em mim dizer que não. Falei que atendia o pedido, que não deixaria ninguém entrar no quarto dele, muito menos um cobrador... ele se esforçou pra juntar a rugas da cara pra conseguir dar um riso agoniento e triste de agradecimento.
Na verdade, a morte dele não me fazia a mínima diferença. Não sentia nada mais por ele. Era um estranho pra mim. Mas dá pena ver um sujeito morrer assim, solito no mas. Talvez não merecesse cosa melhor.
Fui para cozinha, botei água no fogo, comecei a cevar um mate, não tava com fome, tinha comido um carreteiro num bolicho do caminho.
Devia ser umas onze e qualquer coisa, da noite, e um cusco magro e fraco, que havia sobrado no rancho, latiu e ouvi um trote de cavalo.
Veio se aprochegando, se aprochegando e chegou.
Deveria ser o tal cobrador.
Como havia feito a promessa pro velho, o cobrador tinha que falar comigo e não ia falar com ele.
Pra que ele visse bem a minha cara e eu a dele, tinha deixado a porta dos fundos aberta, iluminara a cozinha com três lampiões, um em cima da mesa, outro no armário e um perto do fogão.
Aquilo orientava qualquer um que olhasse de fora da casa. O tal cobrador teria que entrar por ali. E me encontrar.
Íamos trocar uns dedos de prosa.
Me sentei no velho banco da mesa da cozinha, colocando em cima minha faca e o meu trabuco. Esses que vocês estão vendo. Fiquei esperando com mate na mão e a chaleira no chão. Crescera naquele chão duro, de tabatinga.
Tava com o corpo meio enviezado, de olho em direção à porta, tomando meu mate, devagarito no mas.
Ouvi o barulho das esporas no terreiro, pelo barulho era um homem só. Melhor assim.
E ele foi se chegando, chegando... quando se enquadrou na porta, ela ficou pequena. Era um animal desta altura! Dava pra fazer três pessoas com aquele couro.
-Buenas! -saudou com uma voz cavernosa, tirando o chapéu e esperando que lhe convidasse pra entrar.
Pelo menos parecia ser um tipo educado. Um índio maneiroso, mas era pra lá de grande e forte, e vocês sabem que não sou de achar homem forte. Mas esse era parrudo dos quatro costados, tinha basta cabeleira, tão preta que se confundia com o escuro da noite lá fora, onde a lua, de vez enquando, dava o ar de sua graça.
Vestia roupa escura, umas bombachas bem cortadas e uns afivelos de prata enfeitavam o cinto e as esporas. O índio tinha cara maleva, um bigode que parecia molhado na graxa, de tão lustroso. Inda por cima o tipo tinha um ar de quem não era de ser por dúvida.
-É a casa do velho Fonseca?
-É o lugar certo! - retruquei - se aprochegue, venha tomar um mate! -convidei o grandalhão, tentando avaliar aquela figura soturna. Pois, o vivente levantou a perna pra passar na trava da porta, entrou e sentou do outro lado da mesa, na minha frente. O banco véio chegou a dar um gemido reclamando do peso da cavalgadura em cima da madeira quase podre. No lusco- fusco do lampião, reparei que um baita talho descia da sobrancelha pelo olho e passava por baixo do bigode, pegando na ponta do osso do queixo.
-Que mal lhe pergunte, antes de aceitar um mate de um estranho, com quem tô falando?perguntou.
-Sou o filho do velho Fonseca. Iron Fonseca, sim senhor, e o amigo, quem é?
-Um credor de seu pai! Mas este meu trabalho! Não sabia que o velho Fonseca tinha filho. Pra mim é uma boa nova.
-Não entendo porquê! Pois, meu velho pai, que está lá dentro pra morrer, disse que estava esperando um cobrador. Não sei porque o senhor não espera como os outros pra receber amanhã as sobras do rancho. Que eu saiba, ele sempre pagou as dívidas, pois era a única maneira de continuar fazendo mais dívidas.
Naquele lero-lero, tentiava tirar uma linha daquele tipo maneiroso. Havia prometido pro velho: ninguém botava os cascos no quarto dele. Muito menos um cobrador. Ele não iria cobrar dívida nenhuma. Nem que tivesse de me agarrar na faca. Mas essa ele já tinha visto junto com o trabuco, em cima da mesa. Essa mesma faca e esse trabuco, que vocês estão vendo, estavam lá. Paraditos, no más, os dois, em cima da mesa.
Mas, do jeito que o animalão pegou o mate, não parecia apressado em falar com o velho. Sosseguei um pouco. Também não parecia assombrado com as armas à vista e nem preocupado em, talvez, ter que partir pro esquisito comigo.
-Mas, afinal, quanto o velho Fonseca lhe deve ?
-Muito!-respondeu num sotaque portenho.
-Pelos atavios, vejo que sua profissão é bem rendosa...-comentei, tentiando diminuir aquele silêncio que só não era maior por causa do tal cusco agourento que, de vez em quando, se esganiçava num uivo triste, ou ainda pelo barulho do vento nas frichas da casa.
-Não tenho do que me queixar, pois, por exemplo, se cobro uma dívida como essa que venho aqui cobrar, e o devedor não pode pagar, alguém paga por ele. Normalmente, alguém muito chegado. Recebo sempre - disse ele com aquele olho fechado de cupincho.
Foi aí que entendi o porquê da alegria dele quando me encontrara ali, e da última maldade do meu velho. Me largar uma dívida dele no meu pobre lombo. Na hora me apareceu um nojo daquilo tudo, velho safado!
-Ou o amigo não sabia que filhos herdam também as dívidas? -falou, o cobrador roncando o mate e me estendendo a cuia, que peguei como se fosse uma pedra cheia de rebarbas.
E se fosse uma pedra ia atirar na cara daquele descarado, aliás, já não sabia qual dos dois era mais calavera, se era ele ou meu velho que se estrebuchava lá dentro...Tem coisas que tu faz na hora, se deixar pra depois, o depois pode não existir e foi o que fiz.
Fervendo de raiva, larguei a cuia devagarito ...E me atirei feito bicho por cima da mesa com a faca! Essa mesmo aqui que vocês estão vendo. Pulei pra acertar o pescoço daquele desgraçado! Ia sangrar ele ali mesmo, se não lhe sampasse uns dois coices naquele traseiro bem embombachado, mandando-o porta à fora.
Mas, até o dia de hoje, não sei o que houve...errei o bote, sei lá ! Ele agarrou meu pulso antes de chegar no pescoço e torceu, e torceu dum jeito que me vi no chão, a faca caída pro outro lado e o beiço enterrado na tábua da mesa e ele, sentado no mesmo lugar, só que segurando o meu pulso com uma munheca de ferro.
-Não te ensinaram que não se deve atacar alguém desarmado? -falou ele naquela voz maneirosa que não deixava dúvida. Parecia até que ria, no lado torto da boca.
Não acreditei! Um cobrador, um sujeito com aquela cara deslavada não carregava nem uma pistola, mas deitado, torto, com a cara cravada no tampo da mesa, com o pulso quase destrocado, não eu não tava em condições de nem de piar.
-O amigo me desculpe, mas não quero ofender! Vim em paz, cobrar o que me devem. Vamos tomar mais um mate, quem sabe acertamos uma maneira de receber o que o teu pai me deve!
Não dava pra discutir, me levantei meio mole, um pouco troncho. Não sei o que me deu, atacar aquele cavalão assim no más, achei na hora que tinha enlouquecido, é que o sangue me subiu nas ventas, o velho passara a dívida dele pra mim! Mas fosse como fosse, não ia pagar nada pra quele tipo maneiroso, errei na faca, mas ainda tinha chance com meu trabuco.
-Nem pense nisto, vivente! -falou ele, sentindo meu olhar maldoso para a arma -vamos tomar um mate, podemos resolver esse problema em paz. Vou te dizer o que o teu pai me deve e gostaria de ouvir a sua opinião como herdeiro.
Eu caíra como um pato bobo na arapuca armada pelo velho! De que maneira ia me livrar daquele índio com aquela cara cheia de buraco? E forte daquele jeito!
Apesar do meu ataque, ele parecia frouxo nos cascos e continuava com aquele riso de sastifação embaixo do bigode.

Enquanto juntava os apetrechos espalhados pelo meu pulo, pra preparar outro mate, ele meteu a munheca embaixo do colete e tirou dali um relógio de ouro, um cebolão mui lindo.
-São quase media noche, daqui a pouco o velho Fonseca deixa esse mundo como viveu nele, na trapaça, calavera, ladrão, sem vergonha, e por último, agora, faz mais uma caloteragem, deixa o filho para pagar uma conta que ele fez comigo anos atrás.
-O senhor deve ter direito de dizer tudo isso dele. Está sentindo que não vai receber o que lhe deve, mas o que ele lhe deve ?
-Se lhe disser, o senhor assume a dívida?
-Mas que pergunta.!!! O senhor havia dito que eu era herdeiro da dívida e agora, pergunta se fico com a dívida? Não lhe entendo, que conversa mais desparceirada.
-Sei que é difícil entender - disse ele, coçando o bigode engraxado - bem que gostaria de transferir a dívida, mas não posso, afinal, o que esse porqueira desse teu pai me deve vai pagar de qualquer jeito, vivo ou morto. A dívida dele é intransferível, a pantomima que ele tentou contigo foi inútil, não se logra o Diabo!
Ele disse aquilo dum jeito que nem achei estranho, tava engolindo um gole meio amargo do mate. Mas tive que rir - o senhor poderia parar com esta broma, sou novo, mas conheço a vida. O senhor é o Diabo? E Diabo, falando em paz! - tive que rir.
-Falei! Não se engana o Diabo. E, é na paz que se trama a guerra...O senhor não sabia disso?
O sujeito era maneiroso mesmo, me chamara de senhor! E nisso ele tinha razão, não é na guerra que se trama a guerra! A profissão de cobrador tem que ser de gente esperta, e pra receber de credor ruim, às vezes, um argumento como aquele poderia até ajudar, inda mais quando o credor era unha de fome que nem meu velho.
-Ah! Então, quer dizer que o senhor é o Diabo!!! - comentei com deboche na voz. - e me aparece aqui todo pilchado, pra cobrar o quê, de meu velho ?
-Aquele calavera, lá dentro, me deve a alma...
Buenos meus amigos, larguei a cuia quase engasgado, me veio uma risada tão forte que me sacudiu pra todo o lado.
Todo mundo é bobo, pelo menos uma vez, um dia na vida. E aquele cobrador bem pilchado queria que aquele fosse o meu dia ou a a minha noche, já que essa prosa de hospício se dava ali, de noche, na cozinha da minha finada mãe, que Deus a tenha.Me dera conta que ele era esperto, rápido na defesa, meu pulso ainda doía, mas... levava aquela broma meio longe demais, ora, o Diabo mateando comigo... Inda por cima quase leva uns tabefes meus, só não dei na cara, porque tinha errado o bote, e ele se safara bonitasso!
Ele tinha mesmo uma cara de malevo, usava um perfume meio enjoativo. Mas daí a ser o Diabo...Como se tivesse lendo o que eu pensava ele retruca:
-Quer dizer que se aparecesse batendo asas, fedendo a enxofre, o amigo iria acreditar? Não dizem que uma das melhores artimanhas do Diabo é fazer crer que ele não existe? Pouco me importa se acreditas no que eu digo. A alma do teu velho me vale pouco mais que o traque de uma mosca, e é minha. Agora, a alma do amigo me parece mais interessante!!!
-Mas não tou dizendo!!! Fosse quem fosse, o tal, na minha frente, tava abusando da minha paciência. Andava atrás de levar umas três facadas do outro lado da cara, só para emparelhar os dois lados! Por muito menos eu desossara, no seco, uns dois ou três índios metidos a sebo. E maiores que ele.
Tinha errado o primeiro coice, mas não ia errar outro. Ele que não continuasse naquela prosa sem futuro, tava pronto pra pular de novo, só que dessa vez não iria errar a patada .
Resolvi interromper aquela prosa sem pé nem cabeça... O tal cobrador era loco das idéias. Era um loco bem pilchado, tá certo, mas era loco! Com loco a gente não pode discordar, mas, também, não pode ser muito mole. Tem que seguir o pensamento dele e agir dentro da conformidade com os pensamentos dele, até ele fazer o que a gente quer.
-Senhor Diabo -disse eu forçando uma senhoria e dando crédito aquele prosa dos infernos, pra ver se chegávamos numa conversa com propósito. Queria terminar aquele assunto, acender uma vela pro morto e ir embora, no caminho encarregaria alguém de enterrar aquele que um dia fora meu pai - o senhor veio aqui cobrar uma dívida que, como o senhor diz, não há como negar, o velho Fonseca vai pagar de qualquer jeito. Assim, o senhor não tem nada mais o que fazer aqui! Se me fizer o favor, pode pegar o caminho do inferno e voltar pra sua casa, pois, mesmo depois de morto, essa casa inda é do meu pai, e se senhor tem algum direito aqui dentro, vá buscar na justiça ou na injustiça no seu tribunal, cobre isso por lá, talvez lhe paguem com juros!
Pois, amigos, pra meu espanto e quase susto, ele concordou e foi levantando aos pouquinhos. Não sem antes dizer :
-O amigo tem razão, não posso tomar mais o seu tempo, mas a minha oferta está de pé, o que o senhor quiser em troca da sua alma.
-O senhor já fez sua oferta. Boa noite, passe bem, disse eu levantando do banco e apontando a porta pra ele.
Até aquele instante, pra mim, tava tratando com um louco metido a cobrador.
-Vou aparecer de quando em vez para renovar a minha oferta, buenas - disse, e acertou o barbicacho, enterrou o chapéu na cabeça girou os calcanhares e saiu batendo as esporas no terreiro.
Ainda ouvi o cavalo dele dando um relincho, o barulho dos cascos no capim, o latido agourento do cusco, o ruído do vento e despois o silêncio, e o vento. Foi aí que me deu um arrepio no cangote que aparece cada vez que penso naquela noite.
-E o teu velho? -perguntou Benedito - morreu ?
-Tinha morrido, antes do cobrador ir embora.
-E ele?-perguntou Índio, acendendo outro palheiro -não apareceu mais?
-Tem sim, tem sim, tem aparecido de vez em quando... Já senti aquele perfume no pescoço duma dama, num guri tentando me vender uma loteria e numa cancha reta... A proposta dele inda tá de pé, e se algum de vocês tiver interesse...