sábado, 16 de janeiro de 2010

Discurso sobre a invisibilidade


Enquanto a maior parte das pessoas quer estar presente, visível, o desejo de Tânia era outro. Praticava exercícios de invisibilidade.

Para ela, o que chamamos de realidade era a ponta de um enorme e profundo iceberg. Usando um analogia diferente do mito da caverna de Platão, mas em consonância com a imagem criada pelo filósofo, ela considerava a realidade o que estava submerso, e a parte externa como resultado invertido da verdadeira realidade. Alguns amigos diziam que ela era um prato cheio para os psiquiatras, o que ela desdenhava, afirmando que os psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, eram adeptos da ciência da falta de imaginação, da adaptação ao senso comum, que buscava extrair a verdadeira força contraditória que alimenta a humanidade tornando os seres humanos objetos moles, adaptáveis, como uma cadeira ou uma mesa, onde alguém poderia sentar em cima ou pisar sem obter reação. E, finalizava o discurso afirmando:

-Uma ciência que acredita ser o homem apenas produto do meio, familiar, social, uma ciência que materializa o espírito, que não faz jus ao mito de Eros e Psiquê!Não a encaro e nem a respeito como ciência ou algo para ser levado a sério.

Deixando de lado suas ideologias, o que me interessava em Tânia eram seus exercícios de invisibilidade e os progressos que conseguia nessa arte. Me impulsionava saber tudo a respeito dela, além da curiosidade intelectual, uma relação de afeto, da minha parte, da parte dela eu era visto como apenas um bom ouvinte, um amigo próximo, e várias vezes, muito preocupado com as possíveis consequências de seu comportamento temerário, em busca da descoberta dessa realidade que para ela, era tão mais verdadeira como a que a partilhamos todo o dia, e que é considerada pela maior parte da humanidade como única.

Assim, conheci algumas técnicas empregadas para adquirir o domínio da invisibilidade e que, de acordo com Tânia, a preparavam para o grande confronto com a parte invisível do iceberg. Como não compreendia inteiramente o que ela falava ou procurava, não me agradava a idéia dela querer encontrar alguma coisa numa pedra de gelo. Cada vez que pensava no assunto me vinha a imagem de uma mosca presa dentro de um cubo de gelo. Você invade uma realidade que não conhece, e ela o envolve num conjunto de diversos matizes. Eu sugeria, sempre que, antes dela entrar em locais assim, era importante saber onde se encontrava a saída.

Mas ela não prestava atenção ao que eu falava. Não procurava a saída, procurava a entrada dessa grande realidade, sair era algo, que não parecia estar em seus planos.

A realidade pode presumir uma não-realidade, se era como ela dizia, podia se imaginar que as regras dessa não realidade eram o contrário do que imaginamos como realidade, e assim, ela deveria estar preparada para enfrentar um simulacro do que vivia. Qualquer que fosse a hipótese do que ela se propunha a enfrentar, era um desafio, que eu só conseguia vislumbrar através do que ela narrava sobre seus exercícios.

Lembro perfeitamente de alguns, um deles era assim:

-Você chega em uma grande festa que conhece o anfitrião e várias outras pessoas, mas em vez de se reunir a elas, procura o primeiro grupo de desconhecidos que encontra e se junta a eles, e permanece a festa inteira com eles, no final, vai se despedir dos anfitriões, esses ficam surpresos ao falar com você, porque não a viram ali durante toda a noite.

O procedimento foi claro, ela não queria ser vista, e somava outro ganho nisso:

-Queremos ficar juntos, falar, interagir, partilhar com aqueles que são iguais em interesses a nós, isso é um comportamento reflexivo, difícil é você conseguir agir contrário a isso, se relacionar de forma intensa com criaturas que nada tem em comum com você. Cheguei a discutir isso com ela sobre esse tipo de pensamento, que se poderia levar a justificar atos absurdos. Mas ela não deu a mínima importância
às minhas observações.

E, assim, seus exercícios se multiplicavam numa série infinita de desafios, ela procurava situações de risco que me deixavam de cabelo em pé, como sair ilesa no meio de um multidão que fugia da polícia. Ela não fazia aquilo para demonstrar coragem ou incluir em sua lenda pessoal, era extremamente objetiva.

- Nesse dia fiquei completamente invisível- ela me disse- eles batiam em quem encontravam pela frente, e sai caminhando enquanto eles vinham minha direção, eles abriram a formação e passaram ao meu lado espancando as pessoas, ao meu lado! E, em mim, ninguém tocou!

Era impossível não partilhar de seu entusiasmo, claro que de forma intelectual, pois estar no meio de um multidão de desempregados, biscateiros, vendedores ambulantes que realizavam um protesto atirando pedras na polícia, era uma situação fácil de imaginar o resultado desagradável, para quem não tinha nada a ver com aquilo, entrara no conflito para realizar um teste consigo mesmo.

A Civilização de Sonâmbulos

Para ela fazemos parte de uma civilização de sonâmbulos.

-Fazemos tudo dormindo, imaginando que estamos acordados - dizia - para justificar outra série de exercícios que segundo ela, tinham relação com a verdadeira natureza de estar presente no mundo.

-As pessoas imaginam que estão acordadas e dormem o tempo todo, caminhando, falando sozinhas, descrevendo para si mesmo o que vêem e sentem ou o que vão fazer, o que temem, não tem a menor noção do que seja o silêncio. Acham maravilhoso sair de um lugar e chegar em outro sem terem sequer notado o caminho, caminham, andam, prosseguem, sonhando com o futuro, com o passado, com outras pessoas, consigo mesmo, com seus desejos, seus ódios, seus amores, é assim que vivem, sem perceber o percurso que fazem. Acreditam fazer várias coisas ao mesmo tempo e não sabem que fazem tudo em sequência.

Esses exercícios que ela designava como “lembrar-se de si”, fazia parte de um sistema que ela havia aprendido com um discípulo de Gurdjieff, o autor de Encontro com Homens Notáveis, um místico que saído do Cáucaso, percorrera a Rússia e parte da Europa, nos primeiros anos do século xx e que ensinara essas práticas relacionadas ao acordar, trazidas de um obscuro sistema sufista.

-Você vai passar uma porta, para, e se pergunta:

-Estou indo aonde? Fazer o quê?

Esses exercícios poderiam ser feitos ao caminhar na rua. - dizia ela - aos poucos, os exercícios, aparentemente insignificantes produziam resultados inesperados e permitiam começar a acordar desse sono sonambúlico.

Agora, não me perguntem onde ela anda, depois que soube que ela conseguiu atravessar portas, paredes e andar sem receio pelos recantos mais tenebrosos do universo, não que eu tenha perdido o interesse por ela, não ao contrário, ela simplesmente desapareceu para mim.

Tornou-se invisível.

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